Tradução do capítulo Antropologia do livro Què és l'home, Edicions Prohom, Barcelona 2005

Antropologia luliana

 

 

 

A chave da antropologia luliana encontra-se no Cap. III do Libre de Home- Liber de homine (ca.1300), onde se responde à pergunta: Home, com és home? - Quomodo homo est homo? A contundente resposta que Llull nos dá em breves linhas revela-nos ao mesmo tempo as diversas perspectivas[1] em que se situa sua especial metafísica e o método de trabalho com que acessa a realidade. Porque o homem que Llull busca definir é o homem real, concreto, tal como é no mundo, sem mistura de subjetivismos. A perspectiva da antropologia luliana visa revelar o que é o ente homem, diferenciá-lo no horizonte da totalidade dos entes. Em suma, busca a verdade sobre o homem.

 

Llull deparou-se com o desafio da realidade, sempre nova e por vezes contraditória, do ente humano e esforçou-se ao longo de sua vida por penetrá-lo desde dentro, pondo em evidência suas partes constitutivas, seus dinamismos naturais, ordenando as esferas da vida e do espírito — desejo de todas as antropologias — numa unificação que supera os contrários.

 

 

O ser do ente humano

 

Llull descobre duas partes no ente homem. Melhor dizendo, três, pois segundo ele todos os entes se constituem como tais também pelo ato que une ou conecta suas partes constitutivas.

 

Seguindo a Aristóteles[2], Llull entende que a mera união das partes que o constituem não basta para conferir-lhe o status de ente. Torna-se necessária a permanência dessa união; isto é, que o ato que a realiza seja também uma atividade constitutiva. Mais abreviadamente: para que um ente adquira entidade própria não basta a conjunção de suas partes, é preciso que o ato que as une permaneça. Ou, com outras palavras: se o ente se constitui como tal ao ganhar realidade pelo ato, tudo o que ele é – inclusive o ato – deve obedecer a dois princípios: atuar e permanecer no ser que se é.

 

Que significa um ato permanecer? Significa atuar sempre a partir da própria realidade já constituída. Em resumo: não se pode permanecer no ser se não se atua, e não se pode atuar sem permanecer no ser que se é[3].

 

Llull dedica a primeira parte do Libre de Home a explicar o ser do homem. No primeiro capítulo fala do corpo e no segundo da alma. No terceiro, Llull responde à pergunta que mencionávamos no começo — Home, com és home? - Quomodo homo est homo?   com surpreendentes palavras que resumirei da seguinte maneira: Tanto no corpo como na alma encontram-se partes ativas e passivas. O conjunto de partes ativas constitui a forma do corpo e a forma da alma; o conjunto de partes passivas, a matéria do corpo e a matéria espiritual da alma. Estas partes ativas e passivas do corpo e da alma têm, por sua vez, seus atos naturais, os quais, tomados em seu conjunto, culminam em dois atos naturais comuns, um do corpo e outro da alma, a meio caminho entre a matéria e a forma e conectando ambas, dos quais resultam duas substâncias: o corpo humano e a alma racional. Simultaneamente, as formas ativas do corpo e da alma, assimiladas entre si pela sua atividade e finalidade, originam a forma comum de homem, e as matérias passivas da alma e do corpo movidas pelas formas respectivas, mas de tal maneira que  a forma da alma, movendo a forma do corpo para que mova a matéria do corpo a um mesmo fim comum a ambas matérias, origine a matéria comum do homem. O homem surgirá apenas pela atividade de um ato superior pelo qual e no qual a forma comum de homem e a matéria comum de homem unem-se e permanecem unidas. E enaixí home està en lo som[4] – Et sic homo est superius.

 

Se a estas idéias agregamos as contidas no Libre de Anima racional (ca. 1296) perceberemos que a antropologia luliana adianta-se em muito ao seu tempo e  resolve várias disputas correntes entre seus contemporâneos, sem abandonar, contudo, os alicerces do pensamento clássico. Com efeito, Llull continua metafísico; não abandona a perspectiva do ente, iniciada por Aristóteles no seu tratado De anima, e a fundamenta numa teoria do ser; tem uma clara posição na discutida questão de sabermos se as potências da alma formam parte da substância desta ou são meras potências acidentais[5]; define a alma como forma substancial do corpo; cancela a doutrina da multiplicidade de formas no ente; e introduz a perspectiva do sujeito na hora de compreender a totalidade dos objetos, mas sem subjugar estes últimos ao subjetivismo, como aconteceu a partir de Kant. E, sobretudo, não abandona a transcendência, muito pelo contrário a metafísica luliana alcança e se apóia na transcendência. Llull é da opinião de que só pode transcender o que é imanente, daí que se o homem se instalar no ato e se plenificar na totalidade do seu ser, alcançará o Transcendente e, sem cair no imanentismo, não precisará sair de si mesmo pois nessa altura a verdade transcendente habitará nele[6].

 

Consideremos passo a passo a novidade que esta concepção do ente humano nos revela.

 

 

O homem é por um ato

 

Ainda caudatário de Aristóteles, Llull afirma que as substâncias são resultado de atos: as  substâncias da alma e do corpo resultam de seus atos naturais e o homem é também resultado de um ato, o ato de ser homem. Se bem a primazia do ato na substância foi descoberta por Aristóteles, Llull foi o primeiro a ter mantido essa primordialidade até o fim de seus escritos, pois, como é sabido[7], Aristóteles abandonou esse sentido transcendental do ato. Ser substância é ser em ato. Brilhará aqui com todo seu esplendor a doutrina luliana dos correlativos do ato, que concebe os entes, substanciais ou acidentais, na sua tridimensionalidade de forma-matéria-ato, ou sujeito-objeto-ato, ou ação-paixão-ato. Não se dá na realidade nenhuma forma ou sujeito ou ação sem ato, como também não encontraremos nenhuma matéria, objeto ou paixão sem ato.

 

O homem emerge deste modo aos olhos de Llull como uma criatura superior que se constitui como tal por um ato superior que culmina os atos de suas partes inferiores e os eleva a uma harmonia e unidade também superiores. A atividade própria dos elementos da estrutura ôntica do ser humano depende deste ato emergente e superior; sem ele ela não poderia ter lugar. Em Llull o ato constitui o ente; e, assim, o obrar humano, o homem concreto.

 

Para melhor explicar essa construção da substância humana, precisamos recordar que Llull distingue em cada uma das substâncias atos com objetos interiores (de dins) e atos com objetos exteriores, e esclarece que “os objetos exteriores têm-se nos interiores”[8]. Os atos próprios são intrínsecos ao sujeito e o caracterizam. Na alma racional, por exemplo, Llull diz ser necessário que existam um ato permanente de amor, de entendimento e de memória em cada uma de suas potências. São os “atos próprios”, intrínsecos à alma, com que o entendimento se entende, a vontade se ama, e a memória se lembra de si próprio. Todos os outros atos extrínsecos — conhecer, amar e lembrar as coisas exteriores — devem realizar-se sob o amparo daqueles atos próprios interiores. Esclarece ainda que esses atos interiores são substanciais, radicais, graças aos quais o ente se mantém naquilo que é. São atos permanentes, isto é, estão sempre em ato, não passando de potência a ato, e seu conteúdo se transforma na própria substância. Se não houvesse na memória um contínuo lembrar, no entendimento um contínuo entender e na vontade um contínuo amar, não poderia haver nenhuma outra ação no homem e conseqüentemente não poderia dar-se o ato pelo qual o homem é homem porque, recordemos, é o ato de ser homem que sustenta aquelas ações. Portanto convém “que os radicais lembrar, entender e amar estejam em contínuo ato, durante todo o tempo em que o homem for homem”[9].

 

Isto explica que os atos — desde os mais simples ao mais complexos, dos mais externos aos mais íntimos — que com o concurso de sua liberdade o homem vai realizando  tornam-se construtores do próprio ser. Com efeito, não lembraríamos, entenderíamos ou amaríamos  coisa alguma se não houvesse em nós um lembrar, um entender e um amar nós mesmos contínuos, e, por sua vez, cada ato operativo de lembrar, conhecer e amar que realizamos aperfeiçoa em nós a lembrança, o conhecimento e amor de nós mesmos. Portanto, a impressão que nos deixa uma boa música, a vista de uma bela paisagem, o ato de pensar, de querer, de falar, de ofender, de pecar, de perdoar... vão constituindo e revelando-nos o que nós somos. Conscientemente ou não, essa experiência vital está presente no nosso dia a dia e constitui parte da nossa realidade atual.

 

Veremos mais adiante as conseqüências que se derivam desta doutrina que esclarece o modo como se efetua o entrosamento entre o homem e o mundo.

 

 

A descoberta do próprio ser

 

Sabemos agora como o homem é, mas logo a seguir cabe perguntar-se pelo conteúdo deste ato de sermos homens. O que é ser homem? Llull acaba de explicar-nos que o homem, este homem concreto e real, é o resultado de um ato superior que mantém permanentemente unidas a forma e a matéria comum humanas. Mas, o que é este ato de ser homem? O quê  percebo ao encontrar-me sendo homem?

 

Diz-nos Llull que o ato de ser homem é o princípio ativo unificador que sustenta os atos concretos do corpo e da alma, ou seja, os atos de elementar, vegetar, sentir, imaginar, querer, entender e lembrar. Mais adiante veremos que a substância gerada por esse ato superior, o homem, possui também um ato próprio, que se realiza no seu interior (de dins) e que consiste em humanizar-se. Agora quero chamar a atenção para o fato de que este método de permear uns atos nos outros permite a Llull vincular a experiência do próprio ser à percepção do ser das coisas e do Ser supremo, Deus. A metafísica luliana fundamenta-se, pois, na transcendência. E nesse momento, Llull distancia-se de Aristóteles.

 

Na verdade, seria melhor dizer que Llull continuou sendo aristotélico, pois seguiu seu mestre na doutrina do ato, e foi Aristóteles quem se distanciou parcialmente dessa doutrina ao abandonar a perspectiva do ato como principiador do ente e situar  equivocadamente o principiador do ente na forma ou essência. O ato advém à substância pela forma, diz o Estagirita, contudo esta afirmação significa para Aristóteles que cada forma exerce seu ato segundo algumas condições próprias já preestabelecidas cujas diferenças restarão sem explicar. Cada forma é assim atualizada pelo seu ato, mas sem intervenção do Ato Primeiro. Para Aristóteles, pois, não há ato mas atos. Eliminou a possibilidade de unificar pelo Ato esses atos. Llull pelo contrário diz que a forma é ato, mas quem tem a primazia ao principiar o ente não é a forma mas o ato. Ela está em potência para o ato; o fim da forma é o ato. Em última análise, as diferenças que encontramos nos distintos aspectos das coisas são, segundo Llull, diferenças com relação ao ato próprio dessas coisas. O ato, pois, permite unificar tanto o ente real como as explicações que se dão dele. Aristóteles abandonou esta perspectiva e tenta explicar as diferenças entre os entes pelas formas. O ato deixa então de ser um princípio transcendental, supraformal. Haverá então diversos princípios ativos diferentes, e se perderá a possibilidade de unificar a totalidade do real a partir do ato[10].

 

Por não ter perdido a perspectiva da principialidade do ato, quando Llull examina a estrutura de atos de um ente reporta-se sempre a um ato superior, e assim chega, diferentemente de Aristóteles, a um Ato primeiro, Deus, que realiza e sustenta o universo de atos. E assim, o homem, ao descobrir seu próprio ser, é levado necessariamente a contatar com o Ser divino.

 

O homem percebe seu ser no encontro com as coisas. O homem, diz Llull, é intelectivo e move seu entendimento para que “entenda em seu inteligível”[11]. Aparece aqui mais uma vez a tripartição do ato de conhecer nos três correlativos —entender, entendido e inteligível— sem os quais o conhecer não teria lugar. No ato de conhecer ocorre, por conseguinte, uma atualização do entendimento provocada, sem dúvida, pelas realidades objeto de conhecimento, mas também e sobretudo pelo próprio sujeito que conhece, dado que é ele  quem move seu entendimento a entender. É justamente nessa atualização do entendimento que se manifestará o ser da coisa entendida. Por quê? Porque o ato de entender o que a coisa é — a essência — só pode realizar-se sob o amparo do ato habitual da notícia do nosso próprio ser e será justamente esta notícia habitual que nos permitirá contatar com o ato de ser da coisa que entendemos. Com efeito, ao entender a coisa, conhecemo-nos não somente como seres que só estão sendo, mas também que estão entendendo e entendendo essa coisa. Nunca entenderíamos nada se não soubéssemos que estamos entendendo algo.

 

Desse modo, o ato de conhecer oferece-nos uma informação simultânea sobre o nosso ser e sobre o ser das coisas. Dito com outras palavras: Llull afirma rotundamente nosso contato habitual com a realidade. Estamos em contato permanente com o real, com o em-si das coisas e não só com os fenômenos[12]. Temos acesso à realidade, mesmo antes de conhecer o “quid” dela, o que ela é.  Onde se obtém este acesso? No próprio inteligível, nos diz Llull.

 

Mas Llull nos diz muito mais. Ao encontrar-se com as coisas, continua nosso filósofo, o homem descobre-se a si mesmo. E o quê encontra? Um ser que sustenta os atos de sentir, de imaginar, de lembrar, de entender e querer. Um ser que é por estes atos radicais, contínuos e permanentes, e que quer sentir, imaginar, lembrar, entender, querer...  ainda mais, para ser mais homem. Um ser, desse modo, indigente. Mas Llull diz claramente — opondo-se ao que afirma boa parte da filosofia moderna, sobretudo o existencialismo, que se fecha na experiência do próprio ser e a torna  fundamento da subjetividade[13] — que a experiência do próprio ser impele o homem para a transcendência. A indigência e finitude que o homem descobre em si mesmo são, confirma Llull, de proporções imensas, sim — até o ponto que o ser que descobre em si é um ser que lhe foi dado —, mas essa mesma indigência é o trampolim que o levanta até um Ser supremo e infinito. Em última instância, diga-se que o homem, ao perceber seu ser, descobre que foi Deus quem o tornou real, pondo-o fora do nada.

 

“Eu,  homem culpado, mesquinho, pobre, desprezado por todos, indigno...” [14] sou! Por isso Llull não cabe em si de tanta alegria ao dar-se conta que existe: “covinent cosa és que lo nostre alegre, lo qual havem en vós, que no càpia en nostre cor.” A monumental enciclopédia do Libre de Contemplació começa examinando a descoberta do ser pelo homem. Surpreendentemente, Llull vincula de modo necessário a descoberta do ser com a paixão da alegria e intitula assim o primeiro dos 366 capítulos: Com hom se deu alegrar per ço com Déus és en ésser. O segundo: Com hom se deu alegrar per ço com és en ésser.

 

Perceber-se sendo é sentir-se fora do nada, perceber-se indigente é sentir-se muito perto do nada[15]. Contudo, o contato com o ser é uma festa para Llull. “E doncs nós, Sènyer, per honor d’aquesta festa la qual havem per l’atrobament de vostre ésser, direm als nostres membres que ells colguen e en àls no sien sinó en contemplació vostra” e não se alegrar ao contato com o Ser traz sofrimento e dor: “sàpies que si no t’alegres en la noblea de ton creador, que dolor e treball e pena t’és aparellat a soferir per tots temps.”

 

Essa alegria provém de sentir-se sendo em Deus. Tudo quanto se encontra no homem é real e o é por ser em Deus, e Deus é alegria e gozo: “E ço per què açò m’esdevé, Sènyer, sí és per ço car jo som tot en vós, e vós sóts tot goig e alegre.”[16]

 

É patente em Llull um modo metafísico de reconhecer a transcendência. O ser humano é consciente de que só pode salvar-se em Deus e que fora de Deus só encontrará a perdição. Dai que o ser humano, na doutrina luliana, não seja um pedaço da natureza[17], do mundo físico, pois goza da liberdade de escolha. A escolha entre o ser da transcendência e o ser que ele é.

 

A antropologia luliana inicia-se, portanto, nesta primeira situação vital, na descoberta do próprio ser e do Ser de Deus ao contato com as coisas: um ente precário, indigno, pecador, frente ao Ente Pleno Doador e Salvador.

 

 

A alma, forma substancial do corpo humano

 

Llull tem uma posição clara a respeito do tema da alma como forma substancial do corpo. Para conhecê-la, voltemos mais uma vez para as palavras há pouco mencionadas com as quais Llull descrevia “como o homem é”.

 

Relendo-as com atenção observaremos que não é suficiente dizer que o ato de ser homem mantém unidas as partes ativas e passivas da alma e do corpo. Esta afirmação é já sobremaneira interessante, pois estabelece que uma ação qualquer realizada pelo homem, só pode considerar-se humana se for o resultada da atividade conjunta da alma e do corpo. Hoje, acostumados como estamos a considerar o corpo humano apenas um mero instrumento de uma suposta razão humana autônoma, temos dificuldades em admitir que o corpo seja constitutivo da pessoa[18]. E isto é o que diz Llull.

 

Mas diz-nos muito mais. Ao afirmar que as formas ativas do corpo e da alma originam a “forma comum” de homem, e as matérias passivas da alma e do corpo originam a “matéria comum” do homem, Llull revela com detalhe o modo como passa a ter existência concreta esta matéria comum. Diz que “as matérias passivas da alma e do corpo, movidas por suas formas respectivas, originam a matéria comum” mas explica claramente que isso ocorre porque “a forma da alma põe em ação a forma do corpo para que mova a matéria do corpo para um mesmo fim, comum a ambas as matérias”.

 

Por conseguinte, no pensamento luliano é a forma do corpo a que move a matéria do corpo, mas de tal modo que a atividade deste corpo possua a mesma finalidade que a da alma, harmonizando-se assim, pelo fim comum, as duas atividades. Porém — observe-se bem —, a forma do corpo não poderia mover desta maneira a matéria do corpo se a forma da alma não lhe comunicasse essa atividade. Em última instância, pois, é a forma da alma a que constitui a matéria comum humana. Finalmente, um ato superior — o ato de ser homem — une a atividade da alma com a do corpo, constituindo a substância homem.

 

Estas idéias, expressadas em 1300 em meio a dura polêmica que estava tendo lugar entre seus contemporâneos, contém já completamente delineada a doutrina que seria definida alguns anos mais tarde, em 1311 pelo Concílio Vienense, de que a alma é a forma substancial do corpo humano[19].

 

Duas últimas considerações precisam ser feitas. A primeira diz respeito à imortalidade da alma. Poucos anos antes, em 1296, Llull já tinha deixado bem claro no seu Liber de anima rationali que, como a alma humana existe (é, diz ele) por razão de seu fim [20]— lembrar, amar e conhecer Deus —, por isso convém que seja “forma por si”; e, além desta razão, é forma também, mas acidentalmente, por informar o corpo[21]. Outrossim, essa forma per si é criada. Llull prova que a alma racional é criada e não gerada[22] mediante dez maneiras diferentes, apoiando-se em realidades que considera evidentes. Por exemplo, a liberdade humana. Llull diz que se a alma fosse gerada não seria livre como vemos que é; além disso, seria um corpo, nasceria de corrupção, envelheceria e morreria, e em assim sendo, Deus seria injusto. Sem apoiar-se nunca nas verdades reveladas, como sempre, dá também outras dez razões[23] para provar a imortalidade da alma humana, sendo a primeira delas o fato de ter sido criada sem partes contrárias mas concordantes entre si. A eviternidade da alma é requerida também pelo seu fim— a alma é eviterna por ter sido criada para lembrar, amar e conhecer Deus —; para que as criaturas corporais possam atingir seu fim em Deus; por ser a vida uma de suas partes essenciais; por ser sua espécie e não carecer de coisas externas para subsistir, etc.

 

A alma, portanto, é uma substância espiritual, forma criada e imortal, que constitui uma parte do homem[24]. A outra parte, o corpo humano, mantém-se unido a ela graças ao ato superior que torna o homem existente. Ao separar-se, por qualquer motivo, o corpo da alma, morre o homem, este deixa de ser, mas a alma permanece por ser forma imortal.

 

A segunda consideração diz respeito a outra polêmica da época, a teoria da multiplicidade das formas substancias no ente. Llull logo descarta esta opinião porque sua teoria da inserção dos atos entre si, e a conseqüente inclusão das formas inferiores nas superiores, a contradiz frontalmente. Com efeito, é sempre o ato superior que sustenta o inferior, por conseguinte todas as formas que constituem o ente humano são potências atualizadas pelos seus atos superiores. Deixando de existir estes últimos, os primeiros desaparecem. Deixando de atuar o ato de ser homem, todas as outras formas desaparecem com exceção da alma humana, por ser imortal. Assim o entendeu também seu primeiro discípulo francês Le Myésier, ao afirmar que, propriamente falando, segundo a doutrina luliana, não há outra forma última no homem a não ser a alma racional, dado que os todos inferiores estão em potência com relação aos todos superiores[25].

 

 

Conseqüências

 

Tiremos agora algumas conseqüências da doutrina aqui exposta:

 

Recordemos primeiro as perspectivas em que se situa a metafísica luliana: 1) o ente como um todo é visto sempre a partir das partes que o constituem — a perspectiva da parte —; e 2) o fato de que tanto as partes como o todo são vistos sempre a partir dos seus atos próprios — teoria dos correlativos do ato —. Na pessoa humana, composta de alma e corpo, dá-se uma atividade “própria”, cuja finalidade é constituir o próprio homem, e uma atividade “apropriada”, que se realiza em contato com sua realidade circundante.

 

Llull entende que em todos os entes essas atividades — própria e apropriada  — ocorrem simultaneamente, inseridas umas nas outras, e realizando-se a segunda sempre sob o amparo e sustento da primeira. Além do mais, uma alimenta a outra e os “objetos próprios” nutrem-se dos “objetos apropriados” de tal maneira que não há “objeto próprio” sem “objeto apropriado”. Por outro lado, esclarece que o objeto externo tem-se no objeto interno[26]. Por último, dirá que os “atos apropriados” naturais têm por fim os “atos próprios”, o que significa que estes últimos não ocorrem sem a existência dos primeiros. “Como a luz da lâmpada vive do óleo, assim o objeto próprio vive do apropriado e dele extrai alimento e natureza apropriada.[27]”.

 

Aplicando-se esta doutrina ao caso do homem, não há como não dizer que o “ato próprio do homem”, o ato de humanizar-se, não se dá na pessoa humana sem a humanização de sua realidade circundante.

 

As conseqüências deste conjunto de idéias fundamentais são importantes:

 

1) O homem acessa o próprio ser ao encontrar-se com as coisas, e o contato com o próprio ser revela-lhe o Criador, e nisto consiste a sua grandeza e dignidade.

 

2) Em contato permanente com o ser, o homem não deveria fechar-se em sua autonomia optando pelo seu próprio ser indigente, mas deveria antes escolher sempre em todas as suas ações o Ser que nessa indigência transparece. Todos vemos com evidência que temos capacidade de realizar esta escolha, e chamamos “liberdade” a esta nossa capacidade[28].

 

3) Só mediante ações propriamente humanas — aquelas em que se opta pelo Ser transcendente e pelo ser das coisas enquanto criaturas —, o homem construirá o seu próprio ser, podendo humanizar-se.

 

4) Em sua ânsia de conhecer o mundo, para assim orientar a sua ação prática[29], o homem não pode abandonar a perspectiva da criação. Só entenderá o sentido último das realidades, se mantiver viva a consciência de todas elas serem criaturas de Deus.

 

5) Dado que os “objetos próprios” nutrem-se dos “apropriados”, o homem só conseguirá humanizar-se quando a sua ação prática tiver como objeto a humanização de seu entorno, o que significa usar as criaturas segundo as exigências da criação. Daí que Llull indique o verdadeiro sentido do ser humano com uma definição precisa e iluminadora de sua realidade: animal homificans[30], um animal que humaniza. Tanto a si mesmo como a seu entorno.

 

6) O homem só pode atuar humanamente se permanecer no ser que já é, portanto, por ser um composto de corpo e alma, a corporeidade deve entrar nas ações humanas com a dignidade que lhe advém por ser uma parte da pessoa humana, parte criada por Deus, tanto quanto a alma.

 

7) Os atos “apropriados” do homem têm como fim o ato próprio de “humanizar-se”, porque o homem “està en lo som”. Isto significa que toda a sua atividade — seus conhecimentos, suas lembranças, seus quereres, suas alegrias e tristezas, em fim, toda a sua experiência vital — imprime-se no seu ser espiritual e corporal, e é desta maneira que vai edificando a sua realidade atual. Por conseguinte, segundo Llull, um indivíduo humano é irrepetível e nunca poderá ser copiado, pois não se reduz à sua biologia. Encontramos nesta doutrina uma fundamentação das teorias genéticas modernas, que afirmam que a experiência vital, memorizada nos circuitos neuronais, não se transmite geneticamente.                                           

 

8) O homem só pode humanizar-se orientando bem a sua ação prática, ou seja, incorporando o mundo, experimentando-o corretamente, o que só conseguirá realizar se lembrar, conhecer e querer bem o mundo criado em quanto tal. Em fazendo-o,  conquistará, através destes atos — todos eles: sentimentos, intenções, conhecimentos e amores —, a unidade com a totalidade que o envolve e, na medida em que a consiga, poderá obter um entendimento mais aprofundado da mesma e poderá humanizá-la a través de suas produções técnicas e estéticas.

 

9) Se o homem fizer tudo isso, poderá conduzir este mundo para seu Criador, e nisto consiste exatamente o seu fim[31]. Obviamente, o homem perfeito que realiza essa tarefa de humanizar a criação é Cristo, o Deus-Homem, o Deus encarnado que ao encarnar-se divinizou o universo[32]. Llull entende que todas as realidades são naturais e ao mesmo tempo sobrenaturais[33] e, conseqüentemente todos os homens devem nutrir-se de Cristo.

 

Penso que a antropologia luliana, por permanecer no horizonte da transcendência e por estar em consonância com a criação, é a mais conveniente para o início deste novo milênio, em que se perdeu a capacidade de enxergar a transcendência e desapareceu, no horizonte da maioria das teologias modernas, a doutrina da criação. Têm-se construído antropologias reduzidas, que destacam aspectos parciais do ser humano: sua finitude, suas atividades, seus fenômenos — como a linguagem, a mortalidade ou a historicidade —, e sua dimensão cultural. A antropologia luliana, fundamentada na transcendência, contempla e explica serenamente todos esses aspectos sem absolutizar qualquer um deles.



[1] Notemos que perspectiva é diferente de conjectura. Segundo o dicionário Houaiss, perspectiva é “a forma ou aparência sob a qual algo se apresenta” e conjectura o “ato ou efeito de inferir ou deduzir que algo é provável, com base em presunções, evidências incompletas, pressentimentos”. O conteúdo do termo conjectura é somente o de um juízo subjetivo enquanto o de perspectiva pretende aproximar-se da realidade tal como ela é em si. Contudo, nem todos aceitam esta diferença. No Brasil Miguel Reale, conhecido filósofo kantiano, construiu um sistema que chama de Perspectivismo no qual a “teoria do ser”é uma “teoria conjectural do ser”, fundamentando assim a Metafísica nas “infinitas perspectivas do ser”. Cf. Reale, Miguel, “Perspectiva e teoria do ser”, in: Folha de São Paulo, (3/01/2004).

[2]  Cf. Aristotelis, De anima, II-5, 417b 6-7. O ato (enérgeia) é um progresso para si próprio e para o ato (entelécheia).

[3]  Cf. Llull, Ramon, Arbre de Sciència, in: Obres essencials, Editorial Selecta, Barcelona 1960 vol 1: Dels hàbits del arbre humanal, (passim).

[4] Cf. id.,  Libre de Home, in: Obres de Ramon Llull,  Mallorca 1950, vol.  XXI, p. 28: "E açò mateix dels actus de l ànima e del cors, qui sajusten, e de lur conjunyiment e ajustament resulta e hix home qui passa e està en terç nombre, e és lo tot simple en nombre de home, segons sa diffinició, e ses parts són la sua forma comuna e matèria comuna e l actu comú que dit havem. E en axí home està en lo som." Sobre o sentido do som luliano, cf. S. Trias Mercant, “Nota sobre la pregunta antropològica lul.liana”, StudiaLulliana,  40 (2000) 111-115.

[5] “Diabolica disputatio”a denominava Le Myésier, cf. Hillgart, J.N., Ramon Llull I el naixement de lul.lisme, Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1998,  p. 266.

[6] Sobre a trascendênca no pensamento luliano, cf. Jaulent, Esteve, “Inmanencia y trascendencia en el pensamiento luliano, in: Studia Lulliana, 38 (1999), p. 15-37.

[7]  Cf Garay,  J.de, Los sentidos de la forma en Aristóteles, Eunsa, Pamplona 1987, p. 144 e seg.

[8]  Cf. Llull, Ramon, Libre de Ànima racional, ORL XXI, p. 206.

[9]  Cf. id, Libre de Home, ORL XXI, p. 35: “Si en la memòria no era continu membrar, e enteniment entendre, e en la volentat voler, les formes e les matèries sperituals de la ànima que dites havem en lo capítol «Com és hom», serien ocioses e no haurien ab què s poguesen ajustar, e car les formes no haurien actió ni les matèries passiò sens radicals membrar, entendre e voler, l ànima no hauria ab què enformàs los cors, ni ab què li donàs ésser ni vida, e ab ell no s poria ajustar ni conjunir. Cové, donchs, que ls radicals membrar, entendre e voler sien en continu actu en aquell temps en què home és home”. Cf também  Libre de Home, ORL XXI, p. 28, na nota 4..

[10] Cf. Garay, J.de,  op. cit., p. 146-7.

[11] Cf. Llull, Ramon, Libre de Home, ORL XXI, p. 31: “Entendre cavall o castell és obra accidental exida e influïda del entendre dedins, qui és obra substancial e primera de la essència del enteniment, del qual entendre substancial l ome qui és intellectiu trau l entendre accidenal ab lo qual ateny los objects que desira entendre, e ab aquell serà entès fantàstich e spècia guanyada e multiplicada, e és de la semblança del intelligible dedins, treta d ell per l ome qui és intellectiu movent son enteniment a entendre, e és per ço del intelligible dedins car l object defores és intelligible, ço és cavall o castell, e enaxí de los altres.”

[12] Vejo a Ars luliana como uma lógica dos atos, um sistema para atingir cada ente a partir de seu ato de ser.

[13] Cf. Autores, varios, El pecado en la Filosofia Moderna, Ediciones Rialp, Madrid 1963, p. 133.

[14] Cf. Llull, Ramon,  O livro do gentio e dos três sábios, Editora Vozes, Petrópolis, 2001, p. 41

[15] Ao admitir, e com muita força, a finitude e miséria humanas, Lúlio mostra não só que o homem não pode ser o fundamento de toda a verdade senão que ele próprio precisa de um fundamento. E encontra esse fundamento no Ser Transcendente.

[16] Cf. Libre de Contemplació, op. cit. p. 108-110. Outras expressões encontradas nesses dois primeiros capítulos: “Honor e reverència sia feta a vós, sènyer Déus, qui havets dada tanta de gràcia a vostre serf, tro que son cor nada en goig e en alegre, així  com lo peix nadant per la mar: lo qual goig e alegre li ve, Sènyer, adoncs com considera lo vostre ésser ésser en ésser”. “...hom que vaja, vaig alegre, e on que estia, som alegre, e on que gir ma cara, som alegre.”

[17] Poderíamos dizer, com outras palavras, que a natureza do homem é distinta da natureza do mundo físico. Llull entende que a natureza de um ente constitui-se pelo conjunto de sua atividade. Chama de natureza à inclinação ou tendência do ente a realizar seu ato próprio. Portanto, a natureza indicará sempre o que o ente pode ser. O homem tem consciência do ser que recebeu da primeira Causa, um ser caído, débil, submetido ao mundo físico, e não pode deixar de ser isso que está sendo. Todavia, tem consciência também de suas possibilidades. Ao perceber sua precariedade, dá-se conta também do que pode alcançar. E assim o homem toma consciência da própria responsabilidade em relação ao seu ser. Nisto consiste a sua grandeza.

[18] Llull afirma que o ato de ser homem é mais nobre que o ato de ser alma, uma vez que a alma é parte do homem e o todo é sempre mais nobre que a parte. Contudo o primeiro depende do segundo pois, por ser a alma a que constitui o corpo num corpo humano, só existirá homem se houver nele uma alma.

[19] Cf. O texto do Concílio: Porro doctrinam omnem seu positionem temere asserentem, aut vertentem in dubium, quod substantia anima rationalis, aut intellectiva, vere ac per se humani corporis non sit forma, velut erroneam ac veritati catholica fidei inimicam sacro approbante Concilio reprobamus, definientes, ut si quisquam deinceps afferere, defendere seu tenere pertinaciter praesumserit, quod anima rationalis seu intellectiva non sit forma corporis humani per se, et essentialiter, tamquam haereticus sit censendus. Conciliorum, tomus vigesimus octavus, Concilium Viennense Generale a Clemente Papa V celebratum 1311, E Typographia Regia, Parisiis M DC XLIV, p. 763-4.

[20] Assim se expressa Llull: ”se a alma racional fosse mais ser pelo que ela é do que por amar e conhecer a Deus, seria mais nobre seu ser que o ato de conhecer e amar a Deus, e encontraria seu repouso não em Deus, mas em si mesma”. Cf. Libre de anima racional,  op. cit. p. 170-171.

[21] Cf. Llull, Ramon,  Libre de Ànima racional, op. cit. p. 189: “Provat havem que ànima és substància , e que la principal fi per rahó de la qual ella és, és Déu membrar, amar e conèxer; e per açò, segons la fi, covén que ella sia forma per si matexa simplement, com sia açò que a forma se pertanya acció, e és forma en quant enforma lo cors per accident, ço és a saber, per ço car participa ab ell, axí con la volentat del home qui mou lo cors de un loch en altre”.

[22] ibid. Cf. todo o capítulo De la .ij.a spècia de la primera part.

[23] ibid. Cf. o Capítulo De la .iija. spècia de la primera part.

[24] ibid.. p.187: “És ànima substància speritual qui és part d ome, e per açó és potèncie d ome, axí com part qui és de son tot”.

[25] Cf. Migerii, Thomae, (Le Myésier), in: Suplementum Lullianum, Tom. I, Breviculum seu Electorium parvum. Turnholt 1990, p. 89:Apparet enim, quod in figura est quoddam totum compositum, scilicet homo, quod est actu ex sua materia et forma. Materia enim est, ut patet, composita ex pluribus, quae plura unumquoque intensive in se est actu, ut patet, sed prout est in superiori, est in potentia, ut patet deducendo, ita quod proprie nulla est ultimata forma in homine, ipsum actu hominem perficiens, nisi rationalis. Et quicquid est de inferioribus, totum est in potentia, in illo toto extenso, quamvis unumquoque in se sit id, quod est, et non aliud”.

[26] Cf. Liber da anima rationalis, op. cit. p. 193: “Ha ànima en si matexa los obgects que pren [...] e per açò les potències de la ànima no hixen defores la subsstància e s atenyen los obgects, mas que de les substàncies de fores los recullen de dins”.

[27] Cf. Migerii, Thomae, (Le Myésier), op. cit.  p. 100, linhas 118-122.

[28] A liberdade, segundo Llull, é potência antecedente, a ação livremente feita é  potência conseqüente e ocorrerá necessariamente por obra da potência motriz. Cfr. Libre de Contemplació en Deu, C. 51,25. in: Obres esencials, Editorial Selecta, Barcelona   1960, vol 2, p. 209 “O benigno Senhor, cúmulo de Virtudes e Plenitude de todo Bem. Estabelecestes o homem numa ordem de grandeza tal, que, por razão da liberdade, na qual sua vontade se encontra, de escolher fazer o bem ou fazer o mal, afirma-se nele o mérito da glória ou o mérito da pena; e por razão da obra conseqüente, que é a que se realiza pela potência motiva, acontece o que por necessidade deve acontecer, pois em vossa omnisciência está previsto que assim aconteça”.. (A tradução é minha). Tudo é liberdade na hora de realizar as diferentes e infinitas combinações possíveis de princípios essenciais constitutivos da realidade, e tudo é necessidade na hora do exercício dessas possibilidades. Embora nosso atuar seja livre, nossas obras realizam o que por necessidade já estava previsto. Deus é o Supremo Artista na arte de encaminhar os feitos da liberdade humana para o que quer a Vontade divina.

[29] Cf. Llull, Ramon, Libre de contemplació, Cap. CLXIX, n. 8. op.cit. p.  483:”Enaixi, Sènyer, los hòmens que volen tractar de fer alcunes coses, veen intel.lectualment la qualitat i la quantitat significada en les coses sensuals, les quals coses sensals representen a la intel.lectualïtat la manera a la qual elles són aparellades a ésser subject a aquella cosa que hom proposa a fer d'elles”.

[30] Cf. Lullus, Raimundus, Ars brevis, Felix Meiner Verlag, Hamburg 1999, p. 62 e Lullus, Logica Nova, dist. 1 c 5, Palma de Mallorca, 1744, p. 10. Para o tema do homem animal homificante, cf. Fidora Alexander, “El Ars brevis de Llull, in: Ramon Llull caballero de la fe, Cuadernos de Anuario Filosófico, Univ. de Navarra 2001, p. 76. É importante dar-se conta do significado de definir pela atividade. Ao termos em conta a atividade de um ente para defini-lo, o caracterizamos mais pelo estado a que pode chegar que pelo estado de onde partiu ao começar a atuar. Com outras palavras, afirmamos que um ente é mais aquilo que é pelo seu atuar, que sempre depende de uma finalidade intrínseca. Com outras palavras, a ação visa sempre a plenitude do próprio ente. Este princípio esclarecerá inúmeras questões.

[31] Com efeito, a criação é sustentada pelo Criador, seu Princípio e Fim. Se as criaturas tendem para Deus de um modo natural, só o homem, por suas características naturais, pode lembrar-se de Deus, conhecê-Lo e amá-Lo. Por ser uma substância conjunta de espírito e corpo, o homem contata com todos os outros corpos – chega a dizer “quae in se continet – e possibilita a consecução do seu fim.

[32] Sobre o tema da Incarnação de Cristo, cf. Eijo Garay, Leopoldo, “La finalidad de la encarnación según el beato Raimundo Lulio”, Revista Española de Teología, 2 (1942), p. 201-227.

[33] Não penso que isto transforme a filosofia luliana em teologia nem muito menos que comporte a desclassificação da filosofia. O teólogo argumenta a partir das verdades de fé, Llull nunca se apoia nelas; apenas afirma que as realidades que a fé nos apresenta são tão realidades quanto as outras, e portanto temos acesso a elas, precisamente o acesso da fé. Em temas em que aparecem realidades de fé, Llull usa sempre demonstrações quia, nas que se parte de um efeito para chegar a uma causa que nunca é a causa real própria e que não nos dão a conhecer a essência do sujeito da conclusão. Embora sejam autênticas demonstrações, pois dão a causa da explicação, fica-se sem conhecer a causa do ser. Quando Llull usa a demonstração por equiparação apenas compara objetos, o que pode ser feito sem conhecer-se em sua integridade o conteúdo de ambos. Se partirmos da noção de que cada atributo divino identifica-se com a essência divina, poderemos concluir por equiparação que seu Poder não pode ser maior que a sua Vontade, mesmo sem saber em que consistem ambos. Llull não sumerge Deus e a fé nas realidades humanas, apenas examina as realidades da fé com a razão.