Tradução de: FLASCH, Kurt, Das philosophische Denken im Mittelalter. Von Augustin zu Machiavelli. [O pensamento filosófico na Idade Média. De Agostinho a Maquiavel.] Philipp Reclam jun., Stuttgart, 1988, p. 381-394.

    Tradutor: Edson Dognaldo Gil

  1. Raimundo LÚLIO

Enquanto OLIVI censurava aos filósofos seu saber praticamente sem utilidade, Roger BACON (+ 1292) punha mãos à obra para reformar a ciência, a fim de que ela, finalmente, viesse a ser útil. Raimundo LÚLIO (+ 1316) seguiu-o. Mas tudo o que fez foi original. Carl PRANTL denominava-o "talentoso cabeça-dura" (1) ou, mais brevemente, "semilouco"(2); o próprio LÚLIO denominava-se o "louco": "Jo sóc Ramon lo foll" (Blanquerna c. 79). Caracterizava-se como "vir phantasticus" para demonstrar, então, que a verdadeira compreensão é considerada fantasia. LÚLIO foi um outsider; sua obra demonstra a riqueza da paisagem histórica no começo do século XIV. Os juízos sobre ele estendem-se do "semilouco" de PRANTL ao elogio segundo o qual LÚLIO seria o mais conseqüente e homogêneo de todos os filósofos cristãos (E. W. PLATZECK). Em muitas exposições do pensamento medieval - p. ex., no opúsculo de Josef PIEPER sobre a escolástica (3) - procura-se em vão pelo nome de LÚLIO. Esse silêncio é, em todo caso, injustificado, quando se fez uma avaliação histórica ou de examinar a conexão entre as Idades Média e Moderna: LÚLIO foi uma fonte essencial para Giordano BRUNO; Nicolau de CUSA não possuía tantos textos de nenhum outro pensador quanto de LÚLIO; DESCARTES polemizava contra ele; LEIBNIZ e LESSING estudaram-no. Não se pode prescindir do Lulismo nas discussões sobre o método científico do início da Idade Moderna. No século XIV ele foi ao encontro dos movimentos de reforma joaquimitas. A ciência escolástica de Paris encarava-o de modo preconceituoso, se bem tenha havido lá tentativas regulares de elucidar de forma sistemática a doutrina de LÚLIO. Em 1376, chegou-se a uma condenação papal de teses lulianas que, porém, seria suspensa em 1419. A repercussão de LÚLIO associou-se, freqüentemente, a experimentos de alquimia. Contudo, ele próprio nada tinha que ver com isso, sim, porém, com a astrologia e uma reforma da medicina.

Na investigação científica, a imagem de LÚLIO é oscilante, e é difícil informar-se sobre ele com base nas próprias fontes - a envergadura de seus escritos já assusta: o catálogo de suas obras conta, segundo PLATZECK, 292 títulos. Foram escritas parte em latim, parte em catalão. LÚLIO também escreveu em árabe, mas esses textos se perderam ou foram preservados apenas em traduções. Essa massa enorme é difícil de dominar; ajuizá-la exigiria a competência não apenas de um historiador da filosofia, mas também a de um romanista - LÚLIO é tido como o pai da literatura catalã - e a de um historiador da ciência. Vários textos ainda não foram editados. Mas o estudo de LÚLIO tem-se tornado mais fácil nos últimos decênios: a grande edição de Mogúncia,(4) que era rara, está novamente disponível desde 1965, numa reimpressão em 8 volumes. As obras tardias de LÚLIO aparecem, ininterruptamente, nos marcos da Opera Latina,(5) e também seus escritos catalães podem ser estudados.(6) Uma introdução à vida e ao pensamento de LÚLIO encontra-se no esboço de autobiografia (Vita coetanea), publicado em alemão, em 1964, em Düsseldorf (E. W. PLATZECK), e cujo texto crítico em latim está disponível, desde 1980(7). Quem quiser iniciar-se no pensamento de LÚLIO, pode agora utilizar os excertos de seus escritos que Nicolau de CUSA compilou para si mesmo(8). A elucidação do conteúdo do pensamento de LÚLIO também fez alguns progressos(9).

 

Definição Luliana de Homem

LÚLIO foi um espírito inquieto. Da tradição, não deixou quase nada intocado; queria renovar tudo - a cristandade, a coexistência das religiões, a lógica e a medicina, a filosofia e a teologia; antes de tudo, porém, a linguagem. Procurava a variação; repugnava-lhe a linguagem vulgar das escolas. Sua mania de inovar na terminologia foi criticada já na Idade Média (J. GERSON), ao passo que de CUSA a imitava. Tomemos um simples exemplo: desde a antigüidade, tem-se definido o homem como animal rationale. LÚLIO não se dava por satisfeito com isso. O homem, segundo LÚLIO, deve ser definido como ser vivo humanizante, homificante (animal homificans) (10). Pode-se objetar, contra isso, que em "homificar" (homificare) já estaria contido "homem" (homo), portanto, justamente o que se queria definir. Em todo caso, trata-se de um incômodo novo vocábulo. Mas esse incômodo foi intencional: o que o homem é, devia ser depreendido de sua atividade, de sua realização integral, do processo humano em seu todo; "ser vivo" e "racionalidade", animalitas e rationalitas, seriam determinações demasiadamente genéricas.

A composição desses termos na definição usual do homem enquanto "ser vivo dotado de razão" (animal rationale) não evita o dualismo, mesmo quando se acentua posteriormente sua unidade. Um leão, segundo LÚLIO, é um "ente leonificante" (ens leonans), Deus um "ente deificante" (ens deificans). A inovação terminológica de LÚLIO não revela apenas obstinação e volubilidade lingüísticas; aponta para uma concepção própria da realidade enquanto atividade, uma concepção que o formalismo lógico tradicional e o dualismo convencional perderam. Quem ouve a definição luliana do homem, não sabe ainda o que significa homificare. Mas aprende a atentar para a atividade vital humana integral; não se dá por satisfeito com uma subsunção exterior; começa a pensar o homem enquanto desconhecida atividade essencial abrangente, para além dos limites tradicionais de animalidade e racionalidade.

 

No Ponto de Interseção dos Mundos

Já foi indicado que, para a filosofia da Idade Média, Paris não era o único centro; apenas em nossas exposições é que passou a sê-lo. Maiorca aparece, então, como uma zona periférica. Mas lancemos um olhar sobre o atlas histórico; as Baleares foram, desde 1229, a região preferencial de expansão do Reino de Aragão/Catalunha. O rei Jaime I estava diante da missão de integrar grandes regiões de população islâmica em um estado e em uma civilização, para os quais o cristianismo ainda determinava a forma de vida social e política. O problema da "conversão" não se referia apenas à religiosidade individual, e não se podia tratar os habitantes islâmicos de Maiorca como Carlos Magno "convertera" os saxões. Ao lado do Islã, havia o Judaísmo, imenso nas suas finanças e na sua cultura, sem o qual não se poderia assegurar nem a administração econômica das regiões conquistadas, nem o fornecimento de medicamentos. Uma filosofia da religião instruída na filosofia árabe e no neoplatonismo tornaram os líderes das comunidades judaicas aptos a formarem uma vanguarda econômica, política e cultural (Moses Maimônides; Cabala). Em meio a essa situação, entre 1232 e 1235, nasce LÚLIO. Sendo filho de um companheiro de armas do rei, cresce nos altos escalões; podemos representá-lo como ministro (senescal). As grandes realidades políticas encontravam-se, pois, à sua frente: a filosofia tinha de ser útil para a conversão dos árabes e dos judeus, a fim de promover a paz e a unidade da humanidade.

LÚLIO, que falava com prazer de si mesmo, assim se descrevia ao alcançar idade avançada: "Fui casado, tive filhos, era razoavelmente rico, voluptuoso e mundano. Abdiquei de tudo, de livre e espontânea vontade, para cuidar da glória de Deus e do bem comum (bonum publicum) e promover a fé cristã. Aprendi árabe; mudei-me várias vezes, para pregar aos sarracenos; por causa da fé, fui detido, encarcerado, espancado. Durante 45 anos, empenhei-me por persuadir a igreja e os príncipes cristãos em favor do bem comum (bonum publicum). Agora estou velho, agora sou pobre, mas ainda vivo na mesma intenção."(11)

O bonum publicum foi o Leitmotiv de uma inquieta vida de andarilho entre Maiorca, Paris e Montpellier, entre a África (especialmente Tunísia) e Jerusalém. Uma "conversão" como a de um monge, mas para um caminho individual. Reforma da vida, da filosofia e da ciência em seu todo, com vista às divergências existentes nas bases religiosas da civilização medieval. A Vita coetanea, ditada pelo quase octogenário LÚLIO, informa-nos sobre essas particularidades, embora não se trate de uma autobiografia moderna mas do estilo tradicional de uma história de conversão (conversio).(12)

Trata-se de um valioso documento sobre a atmosfera espiritual, em torno de 1310, sobre a personalidade de LÚLIO e sobre a situação de Maiorca, entre sarracenos e antigas regiões cristãs. Mostra o fim prático-político da filosofia de LÚLIO. Além disso, o próprio LÚLIO acentua que sua Ars teria origem divina e estava destinada a superar a miséria de seu tempo. Ele estiliza os seguintes episódios como especialmente importantes: sua hesitação entre a forma de vida trovadoresca e a vocação cristã; a origem divina da Ars; a baldada tentativa de convencer a cúria; seu medo ante a viagem à Tunísia (13); suas ponderações sobre se devia ingressar na Ordem Terceira dos franciscanos ou na dos dominicanos (14); sua missão na Tunísia, no alto verão de 1292 (15). A Vita mostra um LÚLIO mundano, apaixonado que, como os trovadores, escreve poemas de amor, mas que, aos 31 anos, experimenta dramaticamente a contradição entre o estilo de vida palaciano e a ética monástico-cristã, "aterroriza-se" com isso e decide deixar o "mundo", isto é, abandonar poder, casamento e riqueza. Mas o objetivo de LÚLIO não era meramente individual: queria converter os sarracenos, que, "em sua multiplicidade, cercam os cristãos por todos os lados"(16). Mesmo sem saber como devia concebê-lo, LÚLIO decide escrever "o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis"(17). Antes de tudo, percebe que tinha primeiro de aprender árabe, mas também aqui não pensou apenas em uma solução individual. Já em sua "conversão" ocorrera-lhe a idéia de que tinha de persuadir Papas e príncipes a instituírem escolas de idiomas, nas quais fossem ensinadas as línguas dos infiéis (18). Estes seriam, daí em diante, seus três objetivos, que perseguiria nos cinqüenta anos seguintes de sua vida: 1. não temer nem mesmo a morte, a fim de converter os infiéis; 2. escrever um livro que conduzisse os infiéis ao cristianismo; 3. persuadir autoridades eclesiásticas e seculares a fundar escolas de línguas.

Primeiro, LÚLIO lançou-se ao estudo: aprendeu a "gramática"; comprou um sarraceno, para que lhe ensinasse árabe. Queria ir para Paris a fim de estudar, mas Raimundo de PENYAFORT o convenceu de que devia permanecer em Maiorca. Um passo difícil: a pátria intelectual de LÚLIO foi a zona de miscigenação arábico-catalã, não a cultura escolástica parisiense. Apesar de todas as tentativas de aproximação, LÚLIO continuou sendo para a escolástica parisiense um outsider. LÚLIO vinha dedicando-se há nove anos a seus estudos privados - estava, agora, com 40 anos -, quando lhe ocorreu a idéia de sua Ars. A Vita descreve esse processo, ocorrido sobre o monte Randa, como uma iluminação religiosa (19). Segue-se um intensivo desdobramento da Ars; contínuas viagens para conquistar papas e príncipes para as escolas de idiomas; visitas a Paris, que LÚLIO sinteticamente caracteriza dizendo que lá teria experimentado "a fragilidade do intelecto humano".(20) Por causa disso, simplificou sua Ars.

Resultam, então, as seguintes fases:

  1. Os últimos dos nove anos de estudo privado, antes da descoberta da Ars, portanto cerca de 1272-74. Estudo intensivo da lógica, especialmente a de Al-Gazali. Surge, nessa época, o Libre de contemplació en Déu (catalão); neoplatonismo agostiniano como pano de fundo.
  2. Concepção da Ars e primeiras desilusões em Paris. A Ars tinha, então, 16 princípios; a apresentação matemática era essencial. A partir de mais ou menos 1274, LÚLIO modificaria essa concepção várias vezes.
  3. Por causa das "fraquezas do intelecto humano", LÚLIO simplifica a Ars e reduz o número dos princípios e figuras. A algebrização das relações dos pensamentos fica para trás. Essa terceira fase dura de mais ou menos 1290 até 1308. Obras importantes: Ars inventiva veritatis (1290), Ars brevis e Ars ultima (1308-15). A desilusão com a filosofia universitária expressa-se no Arbre de Filosofia D'Amor. O interesse na própria pessoa e o exercício de crescente resignação evidenciam-se no Cant de Ramon e no Desconhort.
  4. As obras da maturidade, 1308-15, servem, em parte, para influenciar o Concílio de Vienne (1311), no qual LÚLIO obtém um sucesso parcial (aprovação das escolas de idiomas). Em Paris polemiza contra o averroísmo. Este representava, sem dúvida, um poderoso movimento. Seu programa de separar a fé e o saber ia de encontro ao empenho de LÚLIO por sua unificação. Pertencem também aos últimos anos a Vita coetanea e a Disputatio Petri et Raymundi phantastici, que servem à defesa da Ars e à interpretação da obra de sua vida.

 

As Inovações Filosóficas de LÚLIO

A fim de caracterizar a significação filosófica de LÚLIO, menciono seis aspectos:

  1. As inovações de LÚLIO repousavam sobre uma nova concepção metodológica. Ele procurava a Ars, a qual deveria possibilitar uma nova versão unitária de todas as ciências - da lógica, passando pela retórica, até a jurisprudência e a medicina. Até então, não tinha havido na Idade Média uma concepção científica tão unitária e, simultaneamente, tão pragmática. LÚLIO queria uma metodologia geral, uma via ad sciendum omnia (21), que, de modo fundamental, provasse e facilitasse todas as ciências. Além disso, LÚLIO articulou um novo interesse no progresso; sua Ars, enfatiza ele, em pouco tempo traria progressos, ampliaria nosso saber ao infinito, tornaria "fácil" o que agora ainda parece "difícil" (22). O verdadeiro saber ou, até mesmo, a sua perfeição, portanto, ainda não tinha sido alcançado, nem estava na posse dos padres da igreja, mas representaria uma tarefa que, em curto tempo, seria alcançável - esses pontos de vista constituíram uma ruptura com a concepção clerical das ciências. Uma nova racionalidade, quase mercantil, anuncia-se, antes de tudo, pela ênfase na utilidade e perfectibilidade da nova Ars. "Novidade", para LÚLIO, era uma recomendação, não mais uma objeção; sem cessar acentua, antitradicionalmente, o "novo" de sua Ars.
  2. LÚLIO procura uma filosofia fundamental que deveria ter seu lugar antes da bifurcação da lógica e da metafísica. Na tradição aristotélica, conceitos originários, ou "categorias", foram tratados tanto na lógica quanto na metafísica. A vizinhança dessas ciências permanece pouco clara, se bem que a "metafísica" também se chamasse "primeira filosofia". A Ars de LÚLIO consistia na unificação da lógica e da metafísica. Pretendia analisar categorias, como a de "bondade" ou a de "ente", de modo mais completo do que até então se fizera, e mais conseqüente no que diz respeito a sua conexão interna. Os conceitos fundamentais de "bondade", "ente", "um" foram, desde a antigüidade, simultaneamente nomes de Deus. Assim os trata LÚLIO; salienta, contudo, que seriam completamente conversíveis e constituiriam, a um tempo, o conteúdo do conhecimento de Deus bem como o do conhecimento do mundo e, além disso, seriam ao mesmo tempo as formas fundamentais do conhecimento humano. Ou seja: nossa penetração compreensiva nos nomes divinos revela-nos estruturas fundamentais do mundo e do conhecimento humano. A lógica tradicional não queria ter nada que ver com o Logos do mundo. Mas, dessa forma, a racionalidade do mundo não poderia ser afirmada: as mesmas estruturas que, em Deus, LÚLIO denomina "virtudes fundamentais" (dignitates), têm de determinar a construção do mundo. A reforma da lógica que LÚLIO empreende, para além de todas as diferenças históricas no detalhe, redunda em que a lógica, como em Hegel, consistiria na "apresentação de Deus tal como ele é em seu ser eterno, antes da criação da natureza e de um espírito finito".(23)
  3. Um aspecto especial da modernidade da Ars luliana reside na matematização e mecanização das relações conceituais. LÚLIO apresentou graficamente as relações das dignitates e também de outros conceitos fundamentais; por exemplo, filosófico-naturais e psicológicos, e inventou métodos para decidir sobre a verdade e a falsidade de proposições, com auxílio de triângulos e quadrados giratórios. Não o fez por mera brincadeira; via nisso um instrumento para sua filosófica idéia missionária: a verdade da Trindade e da Encarnação devia ser apresentada aos sarracenos com auxílio de pequenas máquinas de pensar. Essa técnica não era filosoficamente "neutra"; pressupunha a análise das dignitates e o neoplatonismo a ela subjacente. Não se pode abstrair o novo procedimento de LÚLIO desse contexto, aproximando-o demasiadamente do moderno mundo da informática. Está fora de questão que sua "calculatória" matematizava e operacionalizava relações de pensamentos, embora tivesse caráter utilitário e já não encontrasse mais aplicação nas obras do último período criativo de LÚLIO. Não queria uma lógica puramente formal, mas material = metafísica. Para sua calculatória, porém, criou uma linguagem artificial, um sistema secundário de signos, no interior do qual se devia proceder de modo puramente formal. LÚLIO excogitou figuras móveis que, com razão, podem ser designadas como máquinas de calcular e de pensar (24). Em sua Dissertatio de arte combinatoria, Leibniz partiu conscientemente de LÚLIO.
  4. LÚLIO tematiza, sob nova forma, a relacionalidade da realidade. A filosofia européia, desde ARISTÓTELES, tinha interpretado a "relação" como sendo algo insignificante junto à substância. Na doutrina especulativa da Trindade, contrariamente, AGOSTINHO e João ERIÚGENA deixaram para trás essa minimização da "relação". LÚLIO criou a doutrina dos assim chamados "correlativos" e inventou uma terminologia pertinente a ela: a bondade perfeita não é uma coisa estática, mas a unidade dos seguintes três momentos: a essência, que é capaz de tornar o outro bom - bonificativum; o outro (objeto), que pode ser tornado bom - bonificabile; a união ativa de ambos os momentos - bonificare. Nenhum momento pode ser pensado isoladamente, nem - para usar nossa linguagem - o sujeito nem o objeto nem a ação. Nenhum momento é secundário; isolando-os do contexto criam-se problemas insolúveis; a filosofia torna-se, por sua própria culpa, "difícil". O originário é a unidade. Não precisamos procurar transição alguma; a transição é a realidade. A realidade é, em si, essencialmente (não acidentalmente) relacional. Mas não devemos atualizar essa teoria de LÚLIO: ela devia fornecer o lastro comprovativo para a Trindade. Contudo, não devia possuir apenas uma significação teológica interna. A memória, o entendimento e a vontade deviam apresentar essa estrutura (como em AGOSTINHO), mas também o conhecimento sensível. A doutrina dos correlativos luliana consistiu, assim, em um novo olhar sobre o mundo, não apenas em uma peça apologética de gabinete.
  5. A Ars deveria conduzir à paz religiosa. Várias vezes, LÚLIO elaborou literariamente o motivo do diálogo filosófico entre religiões, fazendo falar os representantes de diferentes religiões sobre a verdade de sua fé. Considerava a fanática autoconfiança dos crentes o principal obstáculo ao entendimento. Esse motivo chegaria ao mundo do humanismo e a LESSING por meio da obra De pace fidei, de Nicolau de CUSA (1453). Mas, também aqui, nos devemos proteger de modernizações: o "ecumenismo" de LÚLIO consiste na argumentativa conversão dos outros a um cristianismo conciliado com a razão. Nos últimos anos de vida, de fato, LÚLIO falou em favor das cruzadas; advertindo apenas que, antes, se deveriam fazer tentativas intelectuais de convencimento, por intermédio de cristãos abnegados e isentos de violência, formados na Ars e familiarizados com as línguas e livros dos não-cristãos. Nessa medida, LÚLIO permanece um inovador e um pensador que esperava da filosofia um proveito real e geral, ou seja, o entendimento acerca da religião. Nesse entendimento, LÚLIO queria demonstrar a verdade do cristianismo; queria tornar compreensíveis, enquanto verdades racionais, a Trindade e a Encarnação, doutrinas centrais do cristianismo. Queria uma filosofia do cristianismo, o que, tanto segundo o ponto de vista dos averroístas quanto do de Tomás de Aquino, era impossível. A fé, para os averroístas, nada tinha que ver com a ciência; segundo Tomás, a fé era suscetível de uma plausibilidade ulterior e uma sistematização secundária, mas não admitia nenhuma prova. Contudo, João ERIUGENA e ANSELMO de Canterbury, do mesmo modo que LÚLIO, queriam fornecer provas estritas. A fé, para eles, tinha uma prioridade psicológico-factual, mas não argumentativa (lógica). É importante ver com que argumentos LÚLIO pensava demonstrar os Mistérios que, segundo o ponto de vista de outros, deviam ser indemonstráveis ou, mesmo, irracionais. Os argumentos para a Trindade resultaram-se da doutrina dos correlativos, mas não apenas dela; em todo caso, não em todos os estágios da evolução de LÚLIO. Seu discurso proferido na Tunísia, no outono de 1292, diante de eruditos islâmicos,(25) nos fornece um primeiro lance de olhos sobre suas razões probatórias.

  1. Um sábio não aceita toda fé casual e autoritariamente transmitida, mas apenas a que atribui à Deus a maior bondade, sabedoria, força, verdade e perfeição. Aceitável é a fé que contenha o conceito mais puro e rico de Deus.
  2. Os atributos mencionados não têm apenas de ser atribuídos a Deus, mas têm de ser pensados no modo mais conseqüente possível, como objetivamente equivalentes: o bem de Deus não pode, portanto, de nenhuma forma vir a ser representado, por exemplo, sem sua força ou sem sua sabedoria. Todos os atributos devem ser pensados em plena concordância (concordia).
  3. Todo atributo deve ser pensado em seus três momentos essencialmente necessários, ou seja, a bondade como a unidade de bonificativum - bonificabile - bonificare. LÚLIO exprime-se assim: nenhum desses atributos pode vir a ser pensado como otiose, ocioso, gratuito, vazio (26); se assim se fizesse, resultaria uma desigualdade, uma desarmonia entre eles. Na realidade, Deus tem de ser assim, como o pensamento conseqüente o postula. A Trindade significa que a deidade realiza, eternamente e em plena igualdade, esses momentos interiores.
  4. Mais notável é o argumento de LÚLIO para a Encarnação: entre o fundamento do mundo (Deus) e o fundamentado (mundo) tem de existir a máxima união possível. Verdadeira é a religião que não abandone criador e criatura, dualisticamente, frente a frente, mas que conceba Deus também como a união desses opostos. A Encarnação é a suprema união da causa com o efeito; somente ela completa, como terceiro passo, o que a criação do mundo começa. LÚLIO, então, teve de atribuir ao homem um papel determinante para o universo e para a relação de Deus com o mundo. Se Deus não se tivesse tornado homem, não realizaria o mais perfeito, mais rico conceito de Deus. Deus "tinha" de vir a ser homem, se é que o mundo devesse caminhar, em supremo grau, de modo razoável. A Encarnação é racional, segundo LÚLIO, porque Deus não se decidiu por ela por acaso - por exemplo, para reparar os pecados -, mas, se cabe exprimir-se assim, para expressar, tão harmoniosamente quanto possível, sua própria natureza correlativa. O fato de Deus tornar-se homem é, segundo LÚLIO, nesse sentido, uma correspondência "racional em supremo grau" de fundamento e fundamentado, uma enorme promoção do homem. Por meio da Encarnação, ele vem a ser o cumprimento do sentido da constituição do mundo, a consumação da natureza interior da deidade ou, decerto, dos sinais dessa completude; na dicção de LÚLIO: Est ergo incarnatio, in qua natura humana est maximata et plenissimata, existens signum maximitatis et plenissimitatis naturae divinae (27).

  1. Recentemente, passou-se a acentuar o aspecto religioso, o teológico e, também freqüentemente, o aspecto místico de LÚLIO. Com isso, ignora-se com freqüência sua nova consciência metodológica e o interesse pelo empírico, pela reforma da filosofia e das ciências. Considera-se sua polêmica contra ARISTÓTELES e AVERRÓIS uma decisão teológica, enquanto, de fato, LÚLIO censurava em ARISTÓTELES uma falta do intellectus, a qual se via na obrigação de demonstrar (28). Ignora-se seu novo conceito de natureza: segundo ele, a natureza é uma penetração recíproca dos "princípios relativos"

diferença - concordância - contrariedade

origem (principium) - meio - fim (finis)

ser-maior (maioritas) - igualdade (aequalitas) - ser-menor (minoritas).

Natureza como sobreposição ou penetração gradativa da trama de relações.

Notas:

  1. PRANTL, C., Geschichte der Logik im Abendlande [História da lógica no ocidente], v. 3, Munique, 1867, p. 146, nota 1.
  2. ibdem, p. 156, nota 77.
  3. PIEPER, J., Scholastik [Escolástica], Munique, 1960.
  4. Editio Moguntina [Mog.], Mainz, 1721 ss.
  5. LULLUS, R., Opera Latina [ROL], Palma de Mallorca, 1959 ss., agora in: CC Cont. Med., 1966. A Logica Nova foi editada por Ch. LOHR, com uma introdução de V. HÖSLE, Hamburgo, 1985.
  6. BATTLORI, M. (org.), Obras essenciais, 2 vv., Barcelona, 1957-60.
  7. Opera Latina, v. 8, ed. H. HARADA (CC Cont. Med., 34, 1980).
  8. Cf. COLOMER, E., Nicolaus von Kues und Raimund Lull [Nicolau de Cusa e Raimundo LÚLIO], Berlim, 1961; --, Da la Edad media al Renascimiento. Ramòn Llull - Nicolás de Cusa - Juan Pico della Mirandola, Barcelona, 1975.
  9. Fundamental: CARRERAS y ARTAU, R. & J., Historia de la Filosofia Española. Filosofia cristiana de los siglos XIII al XIV, Madri, 1939; PRING-MILL, R., El Microcosmos Lullià, Palma de Mallorca, 1961; PLATZECK, E. W., R. Lull: Sein Leben. Seine Werke. Die Grundlagen seines Denkens [R. LÚLIO: Sua vida. Suas obras. As bases de seu pensamento], 2 vv., Düsseldorf, 1964; HILLGARTH, N., R. Lull and Lullism in Forteenth-Century France, Oxford, 1971; MADRE, A., Die theologische Polemik gegen R. Lull [A polêmica teológica contra R. LÚLIO], Münster, 1973 (Contribuição N. F., 8). Para literatura suplementar, cf. Totok II, p. 467-476; Stor. Della Filos. VI, S. 476-480.
  10. LULLUS, Logica Nova, dist. 1 c 5, Palma de Mallorca, 1744, p. 10.
  11. LULLUS, R., Disputatio Petri Clerici et Raimundi phantastici, ed. M. MÜLLER, in: Wissenschaft und Weisheit [Ciência e sabedoria], 2 (1935), p. 312.
  12. Texto agora in: LULLUS, ROL VIII (CC Cont. Med., 34, 1980), p. 272-309. Tradução alemã de E. W. PLATZECK, Das Leben des seligen R. Lull [A vida do beato R. LÚLIO], Düsseldorf, 1964.
  13. ROL IV, 20, 239, CC Cont. Med., 34, 284-285.
  14. ROL V, 21-25, CC Cont. Med., 34, 286-289.
  15. ROL VI, 25-27, CC Cont. Med., 34, 289-291.
  16. ROL I, 5, CC Cont. Med., 34, 275.
  17. ROL I, 6, CC Cont. Med., 34, 275.
  18. ROL I, 7, CC Cont. Med., 34, 276.
  19. ROL III, 13, CC Cont. Med., 34, 280-281.
  20. ROL IV, 19, CC Cont. Med., 34, 283.
  21. Ed. Mog. 3,2.
  22. Ibdem 3, 14 c. 24,3.
  23. Wissenschaft der Logik, in: ibd. 4, 46, GLOCKNER.
  24. Cf. COLOMER, E., "De Ramòn Llull a la moderna informatica", in: Estudios Llullianos, 23 (1979), p. 113-135.
  25. LULLUS, Vita coetanea, in: ROL VI, 26-27, CC Cont. Med., 34, 290-291.
  26. ibd., CC Cont. Med., 34, 290, 399.
  27. Liber de quaestione alta et profunda, II, 4, ROL 8, 167.
  28. Liber de ente, VI, 4, ROL 8, 221